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O nascimento (filósofico) do Projeto Manuelzão

A primeira versão da história e luta de Apolo Heringer Lisboa para despoluir o Rio das Velhas e trazer os peixes e a saúde humana de volta

Manuelzão, o personagem real de Guimarães Rosa: cooptado pelacausa ecológica

Foto: Marcelo Prates

O mês e o ano ainda são os mesmos: junho de 1988. Como a ECOLÓGICO mostrou em sua última edição, no artigo “Pescaria no Rio Cipó”, assinado por ele, o médico, ambientalista e fundador do Projeto Manuelzão, Apolo Heringer Lisboa, uma aventura iria mudar a vida dele e o engajamento e a esperança de milhares de pessoas. Era um final colorido de tarde. A Serra do Cipó, hoje Parque Nacional, cujo nome é uma homenagem ao maior rio que a serpenteia, já tinha ficado para trás.


O rio, não. Como um saudoso professor do interior de Minas, ele tinha proporcionado e internalizado neste seu aluno especial uma visão diferente da natureza. A visão de um rio não apenas como um rio. Mas, sim, a percepção dele como um ecossistema que nos inclui também. Um ecossistema natural, a ser entendido e preservado por todos, do mais simples de seus companheiros de pescaria ao mais importante governador de estado e presidente da república.


Apolo voltava para a capital mineira, ainda maravilhado com a lembrança da qualidade das águas do Rio Cipó, quando, ao aproximar-se de Lagoa Santa, deparou-se com outro rio importante, porém feio e triste. Um rio viceralmente contagiado e afluente também da Bacia Hidrográfica do São Francisco, o Velho Chico: era o Rio das Velhas, após receber todos os esgotos humanos e industriais da Região Metropolitana de Belo Horizonte, via Arrudas e Onça.


Ele redobrou seu olhar de médico para o Velhas. E viu um rio com peixes mortos e moribundos. As suas águas sem brilho, muito menos com gente pescando, nadando ou navegando. Um rio sem vida, apenas prateado pelo cair ocultativo e enganoso do sol sobre as barrigas escamosas dos peixes virados. Horrorizou-se:


“Eu era apenas médico, até esse dia. E me preocupava, como meus colegas de espécie, apenas com a saúde humana. Jamais tinha pensado na saúde dos peixes, na saúde dos rios e sua interface com as populações humanas ribeirinhas. Foi quando percebi que ambos os ecossistemas, o humano e o aquático, faziam parte de um único, interligado e maior ecossistema que é o Planeta Terra. E que nós, seres humanos, numa visão darwiniana, apenas fazemos parte da vida sobre ele. Embora especiais, pensantes e capazes de reconstruir seu destino, somos apenas mais uma espécie da fauna terrestre. Nada mais que isso, para o desaponto e tristeza do nosso narcisismo.”


Nosso destino é comum, Apolo continuou em sua reflexão: “Tudo ficou claro. Se os peixes do Rio das Velhas estavam morrendo, muitos deles com câncer e o olhos esbugalhados, é porque nós, que habitamos a sua mesma bacia hidrográfica, também estamos doentes e morrendo, ao lidarmos com as suas águas cancerígenas. A saúde ou não saúde das suas águas é coletiva, humana e ambiental. Não dá mais para vê-las como ecossistemas distintos e separados”.

Ele passou a ver o recurso natural água, no seu sentido mais elementar, como elemento-eixo e estrutural do pensamento ambiental, dentro do processo de transformação em curso da sociedade.

Apolo Heringer: renascido pela visão maior da natureza - Foto: Procopio de Castro


“Não temos mais de tentar salvar, curar os rios, nem as pessoas. O principal é evitarmos que ambos fiquem doentes. Isso é revolucionário. Explica porque nunca seremos capazes de construir um número necessário de hospitais, de médicos e um sistema eficaz de saúde pública. Explica toda a frustação do SUS, o Sistema Único de Saúde, pois a lógica planetária, a lógica da vida e não da morte, é inversa. No futuro ideal e ecológico, precisaremos de menos médicos e estações de tratamento de água; mas de rios e populações sadias, com qualidade de vida e menos poluição.”

PROJETO MANUELZÃO

Voltemos, mais um pouco, aos primórdios da história política brasileira na década de 1960, quando também desenvolveu, embrionariamente, a ideologia do Projeto Manuelzão. Os anos eram de chumbo. Como subversivo, a exemplo de sua ex-companheira, a hoje presidente Dilma Rousseff, Apolo vivia o auge da sonhada revolução, como militante marxista que foi. Pegou em armas, participou de ações guerrilheiras, teve de se exilar, fez o diabo: “Eu achava que a questão político-ideológica era o único problema do mundo e da humanidade. Não era”.

Após a volta dos militares à caserna, ele contabilizou vários de seus amigos e companheiros mortos. Viu que, no fundo, o socialismo de esquerda e o capitalismo de direita prognosticavam uma mesma e alienada dominação, quando investidos de poder. E que ter sido fundador e também militante dirigente do PT não lhe trouxe paz de espírito nem incendiou mais sua verve de agitador de massas, por falta de uma visão sistêmica e existencial homem-natureza: “Eu me desencantei com tudo, virei um alienado, principalmente comigo mesmo”.

Nem o fato de ser filho de pais protestantes e ter lido a Bíblia seis vezes, o que lhe deu uma visão cosmológica de vida, o salvou. Desencantado até as vísceras da depressão, Apolo se recolheu num autopurgatório: “Resolvi ficar uns três anos sem fazer nada, apenas esvaziar minha mente, o meu cérebro, de tudo que permiti meus pais, meus ídolos, a religião, a política e a cultura jogarem dentro de mim. Imaginei assim. Se eu prosseguisse neste esvaziamento, somente o que fosse verdade e essencial, tipo a maçã que cai demonstrada cientificamente por Newton na sua teoria da gravidade, iria ficar. E eu renasceria a partir de mim mesmo, da minha verdade”.

SALVO PELAS FORMIGAS

Ele fez isso. E o que o salvou preliminarmente até da ideia continuada de suicídio, na época, foi um trabalho forçado e irrecusável que bolou fazer: transformar em livro um escândalo político-financeiro real ocorrido em Montes Claros, no norte de Minas, envolvendo pessoas suas conhecidas e amigas.


Além de distraí-lo de sua frustação política, o livro despretensiosamente elaborado sob o título “Escândalo no Arraial das Formigas”, numa alusão ao antigo nome de Montes Claros, trouxe-lhe um alento além das montanhas e do agreste semiárido daquela região. Publicado numa tiragem de dois mil exemplares pela Cooperativa Editora e de Cultura Médica, a obra foi incluída na seleção dos melhores livros publicados no mundo em língua portuguesa, no gênero romance, pelo “Book of the year” de 1990, da Enciclopédia Britânica, publicação muito respeitada e reconhecida internacionalmente.


Apolo estava com a sua autoestima tão baixa, que pensou: “Ué? Se alguém está me destacando por meu valor intelectual é porque ainda devo ter algum valor”.


Mas esta experiência e uma autoanálise que faria depois causaram uma revolução na sua maneira de ver e agir no mundo, recuperando imagens como aquela quando, em 20 de julho de 1969, o homem desceu na lua e as tevês mostraram, pela primeira vez, a Terra vista do espaço. Ainda veio, na sequência, o deslumbramento em letra e música de Caetano Veloso, também exilado pelo regime militar e perplexo com tamanha e inaugural visão do cosmos: “Por mais distante, o errante navegante, que por ti não esquecerias... Terra, Terra!”.


Quem não se lembra disso? Das célebres palavras ditas por Neil Armstrong, o primeiro astronauta a pisar na lua e ter essa visão: “Um pequeno passo para o homem, mas um grande salto para a humanidade?”


CHOQUE DE VISÃO


O renascimento do ex-guerrilheiro Apolo Heringer Lisboa, codinome “David” para os seus companheiros “aparelhos”, ocorreu aí: “A realidade ali mostrada na tevê de que o mundo tem lógica, se autossustenta de maneira sistêmica, independe do ser humano e ainda pode ser belo e bom para se viver me fez renascer com outra cabeça e sentimento. Que tal como eu fui erradamente catequisado com tantas heranças malditas, e me libertei delas; o planeta também não poderia mais ser visto sob a ótica da colonização cultural e educacional humana que lhe impusemos de maneira antiecológica até então”.


Após esse episódio e trabalhando sua cabeça de forma compulsiva, Apolo passou a ver o Universo como um conjunto de sistemas e a Terra como vida ecossistêmica, propiciando ver e pensá-la não mais com base nas antigas referências geopolíticas. A ideia de o Estado e a sociedade gestarem a questão ambiental e as políticas públicas a partir das bacias hidrográficas e seus ecossistemas, e não desnaturadamente por municípios, estados e países, visão há tantos anos defendida pelo Projeto Manuelzão, nasceu junto:


“Foi uma revolução no meu jeito de pensar e ser no mundo. Eu já era messiânico, fruto do meu aprendizado bíblico e protestante. E virei religioso, não de doutrinas e igrejas mais, mas de “re-ligare” à natureza do planeta que nos mantém vivos e merece o nosso respeito. O nosso cooperar, e não mais colonizá-lo como se fôssemos um ser apartado que chegou de outra galáxia. A ciência já provou que somos daqui mesmo, que nossa origem é animal e que todos os demais seres vivos, tanto as árvores como os animais, são nossos irmãos e irmãs. É essa, e não outra, a nossa realidade. E é difícil mesmo, a nossa velha arrogância como filhos prediletos de Deus aceitar isso. Mas está aí a origem e solução de todos os nossos problemas”.

Em 20 de julho de 1969, ao pisar na lua, Armstrong fez a humanidade redescobrir a única casa (eco, do grego “oikós”) com vida em todo o sistema solar - Foto: Nasa

A noção de pecado, da “queda do paraíso” que as religiões ensinam, passou a ser outra na vida e nova militância de Apolo: “Esse nosso descer ao inferno, o mal estar que nos aflige hoje, fruto da nossa desassociação histórica com o planeta, aconteceu quando os seres humanos, se pensando superior e com origem diferente das outras espécies animais, começou a negar o seu pertencimento natural à Terra. Seu pecado e sua queda atuais tomaram forma quando ele rompeu sua relação com a natureza. Não soube conciliar sua mesma e comum origem biológica com a sua mente, consciência e cultura construídas. Ao se pensar como um extraterrestre, eu sou assim e assado, e posso manipular o planeta, como vimos fazendo até hoje, a humanidade rompeu sua ligação e visão sistêmica com a vida”.


LISBOA-HAVANA


O tempo passou. Veio o ano de 1978 e uma nova experiência marcou a trajetória do médico e hoje ambientalista mineiro. Apolo estava fazendo a travessia Lisboa-Havana, onde iria participar do XXI Encontro Internacional da Juventude. Foram 20 dias no mar, quase três semanas de novas vivências e reflexões. Dessa vez, sobre o elemento natural que perfaz ¾ da superfície do planeta que, mais acertadamente, deveria ser chamado de Água.


Não teve mais dúvidas. Respeitar esse elemento natural como uma referência importante de vida, saúde e cultura, passou a ser uma das suas bandeiras como médico e cidadão do mundo. Quando se dedicou ao estudo da epidemia de cólera que se alastrou em muitos países da América Latina, e chegou ao Brasil, principalmente em Fortaleza, ele se indagou: “O que é a cólera senão a vingança da água enfezada? O que são e representam os esgotos que ainda jogamos nos rios, que não são nossos, mas que tomamos de todas as formas de vida com o mesmo direito no planeta?”


Em 2012, uma dezena e meia de anos depois da criação e atuação do Projeto Manuelzão, sediado na Faculdade de Medicina da UFMG, as respostas para essas perguntas foram transpostas para uma tese vitoriosa de doutorado sob o título “Projeto Manuelzão: uma estratégia socioambiental de transformação da mentalidade social”. Levaram-no a ter um olhar mais crítico de si mesmo e do projeto Manuelzão que homenageia o ex-vaqueiro e companheiro de Guimarães Rosa.


POR QUE MANUELZÃO?

Apolo Heringer em um de seus vários encontros com Manuelzão: “A gente logo ficou amigo” - Foto: Arquivo pessoal


Primeiro porque a ligação saúde e meio ambiente faz parte da área de medicina preventiva e social, dentro da disciplina de graduação Internado em Saúde Coletiva ou “Internato Rural”, ensinada e divulgada por Apolo, onde a ideia do projeto começou. O nome era outro, concebido no final dos anos oitenta. Ele se chamava Projeto Rio das Velhas e tinha o mesmo slogan e sonho atual, ambos possíveis e em curso para se transformar em realidade, como já aconteceu em alguns rios de alguns países: trazer os peixes de volta às suas águas gradativamente não mais poluídas.


Segundo, porque nos anos 92 e 93, quando fazia a supervisão do internato e do projeto na região de Andrequicé, município de Três Marias, na mesma bacia hidrográfica de Cordisburgo, terra natal do autor de “Grande Sertão: Veredas”, Apolo conheceu Manuelzão e se encantou:


“A gente logo ficou amigo. Ele contava casos da década de trinta, quando existiam peixes grandes e se pescava em todo o Rio das Velhas, desde o seu deságue com saúde no São Francisco até o seu encontro com o Arrudas, em Belo Horizonte. Manuelzão representava assim, com legitimidade natural, o sertão não degradado. Era a cara do povo brasileiro, inteligente, indignado e esperançoso. Foi por isso que o convidamos, convidamos a sua história e sabedoria para dar personalidade, um novo nome e um olhar diferenciado ao nosso projeto na UFMG”. Um olhar verdadeiramente revolucionário e desafiador. Um olhar infelizmente, e por isso mesmo, ainda hoje temido, não compreendido e não captado em toda a sua grandeza, pelas políticas públicas e seus gestores em Minas e no país. Mas uma esperança real e inegável, em construção. É o que a Revista ECOLÓGICO continuará mostrado em sua próxima edição especial, excepcionalmente no dia 5 de junho, “Dia Mundial do Meio Ambiente”. A troca da luta armada, por Apolo, por uma luta amada.


Acompanhe!


Hiram Firmino

Revista ECOLÓGICO - Abril de 2013

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