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Cavaleiros sem esperança

Artigo de Apolo Heringer Lisboa, feito a pedido da Revista de História, da Biblioteca Nacional.

Ligados ao comunismo internacional, Prestes e o PCB deixaram de ser referências para guiar os revolucionários pós-1964

Luiz Carlos Preste (de barba) durante seu julgamento em 1937.

(Arquivo Nacional / Fundo Correio da Manhã)


Consagrado na década de 1920, com o título de Cavaleiro da Esperança, Luiz Carlos Prestes (1898-1990) conheceu bem a situação da população brasileira quando esteve no comando da Coluna guerrilheira. Isso o ajudou a moldar o imaginário da justiça social, que o aproximou dos comunistas e, na sequência, o levou a assumir a direção do PCB, por aclamaçãoe vontade de Moscou.


Líder do Movimento Tenentista, Prestes tinha como ideário exigir a concretização dos compromissos sociais e nacionais que se esperavam de uma República, no contexto da urbanização, industrialização e da crise da economia agrário-exportadora no Brasil. O movimento denunciava os métodos servis nas relações de trabalho, herdados da escravidão e os vícios do processo eleitoral ainda sem urna indevassável. O voto era montado nas “marmitas”, envelopes que a população recebia do “coronel” político da região com cédulas contendo os nomes dos candidatos locais que deviam ser depositadas na urna, configurando os “currais eleitorais”.


Em 1935, Prestes comandou a frustrada tentativa de sublevar os quartéis para derrubar Getúlio Vargas e criar uma República Comunista, o que lhe valeu mais tarde anos de prisão. Libertado apenas em 1945, mudou de estratégia política e foi eleito senador. Esta “lua de mel” durou pouco, pois os comunistas eleitos perderam os seus mandatos durante o governo de Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), alinhado aos Estados Unidos naqueles tempos de Guerra Fria. A legalidade só voltou no segundo governo Vargas (1951-1954), e durou até o golpe de 1964. O prestígio do Partido Comunista e de Prestes ruiu junto com o governo de João Goulart, no sentimento e na avaliação da juventude de esquerda que surgia.


Desde a Proclamação da República, em 1889, a legalidade sempre foi muito frágil no Brasil, em razão das desconfianças na democracia – tanto de parte da “esquerda” quanto da “direita”. Era grande a dúvida sobre a serventia da democracia no trato das questões sociais, da renda e da propriedade, daí o medo ou a rejeição a uma vitória popular nas urnas, o que acabou minando o sistema eleitoral e produzindo espécies de violência política.


Há certa analogia nos anos 1960 quando Cuba e Vietnã se tornaram exemplos de lutas contra-hegemônicas com apelo às armas, envolvendo outra geração. Movimentos como o dos hippies, negros e mulheres assumiram postura questionadora desafiando os partidos comunistas, o capitalismo, os hábitos sociais e as guerras. Prestes, exilado na distante e fria União Soviética, via seu partido se desintegrar em benefício de um movimento guerrilheiro que já antes de 1964 criticava a tese política do PCB de aliança com um governo democrático reformista. Essa esquerda foi produto do fim da hegemonia dopartidão e dos rachas do movimento comunista internacional; e não tardou a colocar na ordem do dia o recorrente dilema entre revolução e reformas.


Acusados de reformistas e de incapazes de liderar a resistência popular ao golpe, o PCB e Prestes viram seus louros espezinhados pela juventude irreverente e atirada, como haviam sido eles próprios em um passado nem tão distante.


Os passos de Prestes precisam ser analisados no contexto mundial inaugurado pela Revolução Bolchevique de 1917 na Rússia, onde três deliberações básicas tiveram impacto universal: eliminar a monarquia e o sistema agrário tradicional, que sustentava a tirania e a miséria social; suprimir a burguesia enquanto classe e possível aliada do campo democrático; fazer o planejamento total e executar o desenvolvimento do país, via partido único da revolução.


Prestes e o PCB subordinavam-se às decisões teóricas e práticas do comitê central do Partido Comunista da União Soviética. Situação que deve ter inibido o desenvolvimento de uma elite intelectual brasileira na política e nos movimentos sociais, ao longo das décadas em que o partido foi hegemônico e teve grande influência nas fábricas e universidades, nos meios intelectuais e artísticos. O antigo PCB cresceu carente de autonomia política e intelectual.


Quando a nova geração de militantes iniciou suas ações armadas, em 1967, não conhecia com a profundidade necessária as lutas do povo brasileiro nos séculos passados – como a resistência negra e indígena à escravidão, os conflitos políticos do Império, as lutas pela Independência e os acontecimentos da República. Os revolucionários sabiam mais sobre a história da Rússia, da China e de Cuba, e acompanhavam os debates na Europa em torno da Revolução Francesa (1789-1799), da classe operária e do marxismo.


A resistência guerrilheira do período pós-1964 ressentiu-se da ausência de estudos políticos consistentes sobre o Brasil. O PCB não produzira estudos políticos sérios sobre estratégia e tática. Apesar dos “valores pétreos” de disciplina e unidade, encarnavam a indigência teórica ligada ao método leninista e estalinista de análise e reflexões que importavam. Um exemplo dessa formação foi a maneira como chegou até aqui depois dos anos 1920 a polêmica entre o chefe da revolução russa Lênin e o grande teórico marxista alemão Karl Kautsky, presidente da II Internacional Comunista – associação internacional que coordenava as ações do movimento comunista que se tornou um organismo mundial poderoso de controle dos partidos comunistas, com sede em Moscou.


Por ocasião da revolução de 1917 na Rússia, Kautsky escrevera uma crítica ao conceito de “Ditadura do proletariado”, título do seu livro. Lênin retrucou com “O Renegado Kautsky”, atacando-o vigorosamente. Embora se tratasse de um debate essencial, toda a militância só lia a resposta de Lênin, ninguém se perguntava pelo livro de Kautsky. Já em 1917 o teórico alemão questionava a possibilidade de a Rússia saltar do seu sistema econômico agrário servil para o comunismo, num país gigantesco, arrasado pela Primeira Guerra, dominado pelos bancos ingleses e alemães e com seu pequeno proletariado concentrado em Petrogrado. Mas com livros e folhetos martelando em favor de sua verdade única , o estalinismo fazia a catequese “científica” em nome da unidade como valor maior e dos interesses da pátria do socialismo, a Rússia.


No Vietnã e na China, os líderes Ho Chi Minh e Mao Tsé-Tung tiveram dificuldades em convencer o Partido Comunista da União Soviética da necessidade de valorizar o caráter nacional, democrático e anti-imperialista de suas revoluções comunistas. O Partido Comunista Francês chegou a apoiar a guerra da França contra a revolução de libertação da Argélia, nas décadas de 1950 e 1960, porque aquela não era uma luta proletária. Afinal, com a vitória do comunismo na França, diziam, as colônias também seriam comunistas! Independência para quê?


Com a revolução a Rússia conseguiu se libertar do czarismo, do controle dos bancos europeus e do seu incipiente capitalismo, como pretendia Lênin, mas acabou criando o capitalismo de Estado e impondo uma ditadura terrível ao país, a um alto custo social e em detrimento da construção democrática, dando razão a Kautsky, sobretudo depois da ruptura do bloco soviético nos anos 80 e 90. Este fenômeno é muito comum: os revolucionários e os países pensam fazer uma coisa, mas realizam outra, de acordo com as situações reais com as quais precisam lidar, gerando a posteriori a consciência com a experiência da vida.


Com a trajetória de Luiz Carlos Prestes não foi diferente. Nem com a geração que se empenhou na guerrilha após o golpe militar de 1964. O PCB deixou de exercer papel maior na revolução de 1930 por se deixar levar pela bandeira do “internacionalismo proletário” soviético. Em vez de aproveitar o enorme potencial de Prestes, deseducou-o. Prestes se recusou em 1929 a participar da direção da Aliança Liberal por se considerar um comunista. Longe do pensamento revolucionário comunista, pragmático, Getúlio Vargas tornou-se o arquiteto das maiores conquistas operárias no Brasil dentro do sistema capitalista, até hoje.


No caso da guerrilha pós-1964, foram abandonadas as bandeiras democráticas, consideradas de origem burguesa – produtos da Revolução Francesa, por exemplo. Hoje, predomina entre os remanescentes dessa geração guerrilheira a ideia fatalista de que nenhuma alternativa era possível. Mas isto se diz agora, após a derrota. Antes se pensava na vitória no curto prazo. Em geral, a esquerda não faz autocrítica como prática teórica – prefere narrar os eventos a posteriori, de forma autotolerante, e oscila há décadas entre revolução e reformismo.


Apolo Heringer Lisboa é médico, ambientalista, ex-guerrilheiro das organizações Polop, Colina e Var Palmares e autor de Escândalo no Arraial das Formigas (Cooperativa Editora e de Cultura Médica, 1989).

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